quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Filhos pródigos

Chega um certo momento na vida em que uma pergunta nos assalta em silêncio: fui um bom filho ou filha? A resposta, porém, não vem fácil quando se cresce em famílias onde nunca houve diálogo verdadeiro, apenas ruídos de acusações, silêncios pesados ou palavras ditas sem escuta. É como procurar um reflexo num espelho partido — vemos fragmentos, nunca a imagem inteira. Talvez tenhamos dado amor, mas sem nunca saber se foi entendido ou recebido. Talvez tenhamos sido obedientes, mas sem nunca sentir reconhecimento. E ficamos nesse limbo: como medir a bondade de um filho quando a casa nunca foi lugar de encontro, mas de desencontro?

Num lar disfuncional, as palavras não circulam para unir, mas para ferir, ou então não circulam de todo. Crescemos sem referências claras, sem a certeza de sermos vistos, e assim também sem saber como fomos recebidos. Fomos bons filhos? Ou apenas peças de um jogo em que ninguém conhecia as regras?

Muitos de nós carregamos uma culpa silenciosa, como se tivéssemos falhado em dar algo que nunca nos foi pedido de forma clara. A criança que fomos aprendeu a sobreviver, a calar para não ferir, a obedecer para não perder migalhas de afeto. E, mais tarde, o adulto olha para trás e pergunta se deveria ter feito mais — sem perceber que já tinha feito o possível dentro do impossível.

Ser bom filho não é apenas cumprir expectativas invisíveis, mas poder crescer num espaço de amor, escuta e reconhecimento. Quando esse espaço não existe, a pergunta já nasce viciada: como ser bom num terreno onde a semente nunca foi regada? Talvez o problema não esteja em nós, mas na ausência de um solo fértil.

Chega um tempo em que percebemos que a resposta não está no passado, mas no presente. Ser bom filho talvez seja, no fim, não repetir a violência, não propagar o silêncio, não deixar que a dor herdada determine quem somos. Ser bom filho pode significar libertar-se da necessidade de aprovação e criar, em nós e nos que amamos, a família autêntica que nos faltou.

Eu não deixo descendência, mas sei que se tivesse tido filhos, eu tentaria dar a melhor educação com afetos e baseada na autenticidade de cada ser gerado - sem ousar querer medir tudo pela mesma bitola - dando a hipótese de argumentação e chegar a uma (ou mais) conclusão unânime e compreensível para todos, numa constante reciprocidade de aprendizagem, porque ninguém nasce ensinado, obviamente, nem pais nem filhos. Nenhum de nós!  

 (foi só um desabafo, um momento introspetivo, vulnerável)


Filosofar o Amor

Quando dois estranhos se amam, o que pode acontecer?

Quando dois estranhos se encontram por acaso, tudo parece improvável. Não há um destino marcado, apenas a vida a correr normalmente, até que, por alguma razão ainda misteriosa, dois seres se cruzam e decidem não mais soltar-se, primeiro com certa relutância de uma das partes. Neste mundo com tanta anormalidade, e insanidade mental, todo o cuidado é pouco.

Foi assim com ele, rapaz jovem e estrangeiro que chegou a uma terra algarvia, trazendo na mala a memória do seu país e a inquietação de quem ainda procura um lugar ao sol. E foi assim com ela, uma mulher madura do Norte que, ao longo da vida, foi se reconstruindo com raízes fortes e a coragem necessária, e ainda alguma Sorte, num lugar onde o mar e o céu se juntam e têm a cor mais azul.

O que pode acontecer quando dois estranhos desejam amar-se, além de todos os preconceitos que ainda possam existir num mundo nitidamente em decadência? Talvez o que Aristóteles chamava de “philia” – “(…) É um amor virtuoso, baseado na reciprocidade, na igualdade e em valores compartilhados, distinto de amores mais passionais ou naturais. Para Aristóteles, a philia é fundamental para a felicidade e para o desenvolvimento da virtude, representando a relação entre amigos que se apoiam mutuamente no viver. Porém, nesta amizade amorosa, poderá haver também eros, desejo e química, há também o pathos, essa intensidade emocional que nos arrasta. Kierkegaard dizia que o amor verdadeiro é sempre um salto no escuro, um risco. E não é isso que vivemos? Arriscar amar alguém que não conhecemos totalmente, confiar na entrega, ainda que com medo das sombras do passado e das dúvidas do futuro.

A psicologia ajuda-nos a compreender: quando dois estranhos se apaixonam, projetam no outro aquilo que falta em si mesmos. Ele, estrangeiro, carrega a sede de pertença. Ela, mulher nortenha a viver no Sul, talvez ainda carregue a coragem de abrir espaço para o inesperado ou o improvável. Encontram-se assim no meio da carência e da abundância, como espelhos que se desafiam e completam.

E, no entanto, há poesia: - para ele, amá-la é como descobrir um porto seguro no meio da viagem. É como se o vento do Atlântico soprasse certezas, mesmo quando tudo dentro dele é tempestade. Ela é casa e desencontro, é mistério e clareza, é silêncio que acalma e palavra que provoca. Com tão pouco tempo, ele diz amá-la tanto. Não porque entenda todas as razões psicológicas ou filosóficas, mas porque nela encontra algo que nenhum tratado consegue explicar: a experiência viva do amor. Escreve para ela lindos textos de amor, praticamente todos os dias quando está ausente, e isso tanto a surpreende. Reconhecendo que o amor pode surgir em qualquer idade, não há primeiro nem último, apenas há o Amor que, quando puro e sem maldade, é a base da felicidade de qualquer ser humano.

Como diria Platão, o amor é um “daimon” — algo entre o humano e o divino, uma ponte. E ele sente que entre eles essa ponte já está construída, mesmo que ambos estejam ainda aprendendo a atravessá-la sem medo.

Um medo que provoca nela um “ir com calma e cuidado, sem stress”, a vida é para se ir vivendo, apreciando cada instante como se fosse o último. E ele tem muita pressa, como se o mundo fosse acabar amanhã. E, se acabar, foram felizes “para sempre” enquanto durou, tendo vivido o que era para viverem. Parece que ela emana e persegue o amor desde sempre, e agora ama o amor daquele jovem que, ainda com um pequeno currículo amoroso, e curiosamente mal sucedido, deseja de qualquer maneira entrar de cabeça em algo que desafia a “normalidade”… Mas… por que tudo e todos têm que seguir o que é banal, ou normal, seja lá o que isso for.

No fundo, quando dois estranhos se amam, o que acontece é simples e ao mesmo tempo imenso: deixam de ser estranhos. E passam a ser história.

A história intensa, estranha ainda, mas de amor recíproco entre Felipe e Lina 😊- Almas em construção