sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Doutorices, Pirosices e outras M***ices

    Há dias li o texto de um amigo sobre este tema e inspirei-me, já que também tinha em mente abordá-lo aqui. Mesmo de propósito: passados dois dias, no trabalho recebo um telefonema de alguém que pede para falar com a Dra. Lina Oliveira! Coisa rara, mas às vezes acontece. E eu deveria perguntar “como sabe que sou doutora?” (AhAhAh), ou simplesmente pedir “trate-me por Lina…” mas relaxei… ok neste país é só “doutores” e “engenheiros”… e se me sinto obrigada a tratar alguém por doutor(a) - devido à entidade em que trabalha ou à posição que ocupa, adivinha-se - então que se lixe, ficamos em pé de igualdade e ‘ora diga lá senhora doutora!’


    Sente-se quase uma espécie de vergonha com este tratamento, para pessoas como eu. Caramba, tirei um cursozito com média alta, é verdade (salvou-me o gostar de idiomas), mas dava para passar com um 10… o que poderíamos chamar então àquelas pessoas que queimam as pestanas a estudar para ser doutores a sério (sem aspas), com médias obrigatórias de 20, e que um dia tratarão da nossa saúde, ou que revelam conhecimentos fora de série?...
    Talvez porque somos um país onde os diplomas universitários e os estudos em geral foram um bem escassíssimo durante muito tempo e, de longe, temos os níveis de escolaridade mais baixos da Europa. A partir de certa altura, os pais com algumas posses têm feito tudo para que os seus filhos se formem, têm que ser doutores, engenheiros ou arquitetos, custe o que custar (e para quê afinal, depois perguntam eles; lá vão ter que emigrar se quiserem sobreviver, que tristeza)… Depois, para alguns será o deslumbramento, um bocado a mostrar novo-riquismo; há quem queira mostrar o seu novo estatuto de burguês com roupas de marca caríssimas, festas de casamento pomposas… carros XPTO a brilhar, com bom som e bem alto, para repararmos neles…férias em lugares exóticos, etc. E com esta mudança de estatuto social, o "doutor" democratizou-se, banalizou-se. No Brasil (descendentes de portugueses, claro), por exemplo, tudo o que é patrão leva doutor!
    A verdade é que um bom profissional, empenhado e dedicado, confiante no que sabe e no que deve fazer, está-se borrifando para os títulos. Os outros, os chamados doutores da mula ruça, sem nome, a quem temos que chamar “ó doutor”, “ó engenheiro”, é vê-los engalanados, parece que adquirem uma aura de poder.        Se em algum lugar for preciso resolver algo importante, bastará a palavra mágica e a coisa resolve-se imediatamente. Se for com um ‘badameco’ qualquer, ui podes crer que vai levar horas… É assim, neste país onde impera a titulocracia (em detrimento da meritocracia) e o fator C (as famosas cunhas), em que o aparato da forma de tratamento denuncia o nosso sentido das aparências, deve haver uma relação mágica que se estabelece com a pessoa, sei lá.
    Os estrangeiros têm imensa dificuldade em perceber, e até acham ridículas, as várias fórmulas de ‘chamamento’ existentes na língua portuguesa. Você, tu, o senhor, vossa excelência, senhor doutor, senhor professor, senhor engenheiro ou arquiteto, excelentíssimo senhor, ‘sôtor’, senhora dona... Como explicar a um não-português, por exemplo, o sentido de chamar "engenheiro" a alguém que não pratica engenharia? Ao menos com eles, os gringos, o tratamento preferencial é o nome próprio ou o "you", seja qual for o seu nível académico. A língua ajuda, esse "you" serve para tudo, trato formal ou informal, com ou sem protocolo, e não temos que sentir os desníveis da sociedade.
    Tanto quanto me é dado saber, para os americanos e os ingleses só muito poucas pessoas é que têm direito ao uso dos títulos académicos de doutor ou professor. Em Inglaterra, só mesmo os professores catedráticos no topo da carreira é que usam este último título, não basta ter uma pós-graduação.
    Lembro de uma cena: uma secretária preparando uma convocatória de reunião; tinha de incluir uma dúzia de pessoas, vários doutores e um ou outro engenheiro, e apenas um era sem Dr. ou Engº, esse era apenas o Sr. Fulano de Tal (mas não menos importante)… ali sozinho no meio da lista de engalanados, que situação, “não seria melhor retirar o título dos outros?” pensava ela em voz alta, para a colega ajudar…
    Outra: durante a preparação de um evento alguém apresentou aos franceses a lista dos participantes portugueses recheada de ilustres doutores, e um deles comentou “tantos médicos!” e esse alguém teve que explicar-lhes que médicos ali não havia nenhum…
Enfim… "Palavras para quê? Artistas portugueses e só usam Pasta Medicinal Couto!"
    E eu, que nunca cuidei do meu lado artista, mais do que aqueles anitos a estudar, tenho me licenciado, quase com doutoramento pela Universidade da Vida, tal como tantos outros cidadãos, que é a melhor e a mais completa de todas as universidades: sabemos que, se errarmos, pagaremos a fatura dos nossos erros, quer queiramos, quer não.. Tanto tenho aprendido, e não faço questão do diploma… Aliás, pelo outro obrigaram-me a pagar mais de 100 euros, está empoeirado guardado sei lá onde! Orgulho-me sim pelo facto de ter estudado e concluído um curso - já tarde, mas sempre a tempo - e com aquela média! Só não segui para mestrado porque… é o país que temos… tudo para os “doutores”… Carpe diem!

1 comentário:

  1. Gostei muito da outra tua “postagem” sobre as almas gêmeas.
    Hei-de comentar... foi a melhor que li de ti! Adorei, por isso, penso digeri-la bem para bem a saborear.

    Sobre esta!
    Porque pensam esses “doutorecos” ou espécie acima dos mortais que podem pensar por mim, por ti, ou por todos nós?
    Fingem-se de grandes patriotas, com cartões partidários, imaginam-se pensadores de política que são o desastre em tempo real, outros religiosos que pastoreiam o rebanho e atacam os filhos dos pastoreados...
    Tanto título para tão poucos caixotes de lixo...
    A todos esses, tenham a certeza que nunca deixarei que pensem ou decidam por mim... porque os creio como uns desacreditados de cidadania e no fundo desconhecem que mais do que o meu livre pensamento não existe título que o subjugue.
    A minha última pergunta: quem são esses doutores de mula ruça?
    Esqueci...

    Mas não te esqueci... não te esqueço!
    Tu, simplesmente Lina!
    Bj

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